O blog foi procurado por dezenas de mulheres e homens que, antes orgulhosos de exibir o crachá da Caixa, hoje amargam danos psicológicos e profissionais por terem sido alvo da cultura de assédio implementada por Guimarães nos últimos três anos.
Um roteiro de assédios variados, impossível de escapar. Um esquema implacável. E, se conseguisse escapar de uma investida sexual, havia outro tipo de assédio na esquina: o moral. É assim que funcionárias e funcionários da Caixa Econômica Federal – em cargos estratégicos – resumem o que viveram no trabalho desde que Pedro Guimarães chegou ao banco, em 2019. Eles chamam o período de “inferno”.
Mas Guimarães não agiu só. Quando assumiu, o ex-presidente da Caixa levou homens de confiança e os transformou em seus aliados. Para muitos dirigentes do banco ouvidos pela reportagem nos últimos dias, homens (e mulheres) cúmplices de um esquema que ia de aliciamento de funcionárias a acobertamento desses crimes estão, agora, na mira do Ministério Público.
A lista nas mãos dos investigadores, segundo o blog apurou, só cresce desde a revelação do escândalo, na última terça-feira (28).
Desde então, o blog foi procurado por dezenas de mulheres e homens que, antes orgulhosos de exibir o crachá da Caixa, hoje amargam danos psicológicos, pessoais e profissionais por terem sido alvo da cultura de assédio implementada por Guimarães nos últimos três anos. Essas pessoas decidiram contar suas histórias.
O blog ouviu diversos relatos, a maioria com um modus operandi comum: uma mulher era alvo do interesse de Guimarães, era sondada por Celso Leonardo e, no momento em que recusava as investidas do chefe, caía em desgraça dentro do banco, com rebaixamentos de funções específicas.
Uma vez deslocada, chegava “carimbada” ao novo setor, o que significava permissão aos novos chefes, cúmplices de Guimarães, para praticarem assédio moral como “punição”.
“Criou-se uma cultura de permissão no banco. Como o Pedro Guimarães fazia, todos os dirigentes se sentiam avalizados a fazer, liberados a praticar o assédio que quisessem. Assédio é um modelo de gestão dentro da Caixa. E, quando você resistia a isso, você era bloqueada na empresa – e foi isso o que aconteceu comigo. Quando eu disse não para o assédio sexual dele, fiquei carimbada como uma das que disseram não. Então, como punição, fui removida e virei alvo de assédio moral de outro dirigente – o Antonio Carlos”, relata uma das vítimas da Caixa.
Um dia após as denúncias, Guimarães entregou ao presidente Jair Bolsonaro uma carta de demissão. No documento, ele nega as acusações de várias funcionárias da Caixa que apontaram situações de assédio. O caso é investigado pelo Ministério Público Federal e será apurado também pelo Ministério Público do Trabalho.
O relato acima da funcionária é um resumo de um roteiro repetido de quem passou nas mãos da “gangue de Guimarães”, como muitos desses funcionários os classificam.
Por sofrerem por muitos anos com medo das ameaças de Guimarães, esses funcionários passaram a se organizar nos bastidores e produzir provas materiais, entre mensagens de WhatsApp, vídeos, documentos e áudios do que viveram para entregar ao Ministério Público.
No caso acima, o blog teve acesso a um desses áudios. Antonio Carlos Ferreira, a que a vítima acima de refere, é o vice-presidente de logística da Caixa que, antes, foi presidente do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).
Quando deixou o cargo no Coaf, foi para a Caixa por indicação do governo Bolsonaro. No banco, é descrito por funcionários como um dos aliados de Guimarães e um dos responsáveis por uma “perseguição implacável” dos funcionários no âmbito moral.
Ele já foi vice-presidente de Pessoas, posição que deveria justamente zelar e difundir as boas práticas da gestão pública.
Nos relatos colhidos pelo blog, seria dele a atribuição de executar o que ficou conhecido nos corredores da Caixa como “dossiê KGB”.
Assim que ouvi a expressão pela primeira vez, procurei outros funcionários para confirmar a prática. Não só confirmaram, como todos – entre mulheres e homens -, estão organizando o material relatando suas experiências para entregar aos investigadores.
O “dossiê KGB”, que oficialmente era chamado de “Relatório de Integridade”, consistia em usar como desculpa um “filtro, uma pesquisa reputacional” sobre o histórico do funcionário – como, por exemplo, se ele tinha ficha criminal ou pendências na Justiça.
Mas, segundo os relatos das vítimas, o objetivo, na verdade, era fazer uma devassa na vida pessoal do funcionário, questionando-o sobre as amizades, as posições políticas suas e de seus amigos, além da religião. Se fosse considerado de esquerda ou amigo de alguém de esquerda, por exemplo, estava condenado à morte profissional.
“Os ‘dossiês KGB’ eram motivo de orgulho para Pedro Guimarães. Em reuniões com funcionários nas agendas do Caixa Mais Brasil, ele fazia questão de mencionar essa ‘pesquisa’, inicialmente feita de maneira oculta por sua consultoria direta e, posteriormente, incluída nos normativos do banco como pesquisa reputacional”, denuncia uma funcionária.
Funcionários relataram ao blog casos emblemáticos dessa prática: em um episódio, um homem foi chamado por um encarregado de Guimarães e Antonio Carlos a explicar por que estava, em uma foto nas suas redes sociais, abraçado a um funcionário da Caixa que era de esquerda. Ele não entendeu o questionamento.
“Aí, a pessoa que se prepara, faz mestrado para buscar oportunidades melhor, e acaba numa agência pagando Auxílio Brasil só porque eles decidiram que você não pode abraçar alguém que eles acham que é de esquerda. E se for? E daí?”, lamenta uma das vítimas.
Outro homem, com mais de 20 anos de Caixa, se submeteu a um processo seletivo para ser promovido para uma função em 2020. Passou, mas foi cortado assim que “apareceu” como filiado a um partido “de esquerda” nos anos 2000 – 20 anos antes.
Pior: não sabia do que de tratava quando foi chamado e tomou um susto. Para esclarecer o caso, se dispôs a ir até partido, pedir a tal ficha de filiação e, com o papel em mãos, foi ao cartório. Com o documento oficial – com firma reconhecida – de que aquela assinatura da ficha de filiação não era dele, voltou à Caixa. Mas não adiantou: mesmo assim, ele perdeu a promoção.
O blog questionou a Caixa sobre se Antonio Carlos gostaria de responder e também sobre o que o banco tem a dizer sobre os relatos da existência do “dossiê KGB”, método de perseguição a funcionários usado como critério para promoções e rebaixamentos com base na posição ideológica e na religião. O banco também foi questionado sobre a devassa nas redes sociais dos integrantes da Caixa.
A assessoria do banco apenas se limitou a dizer que “todas as informações serão encaminhadas para análise da Corregedoria do banco, bem como pela empresa independente a ser contratada pela nova gestão”.
Desde que os casos foram revelados, outras mulheres e homens procuraram colegas para se juntar aos relatos e vão engrossar a lista de denúncias ao MP.
Desses dirigentes, caíram Guimarães e Celso Leonardo – mas Antonio Carlos e outros ainda permanecem nos quadros da empresa.
A nova presidente do banco, Daniella Marques, tem prometido, nos bastidores, ser implacável contra a cultura do assédio no banco, e o MP avança no organograma do esquema de homens (e mulheres) que sustentaram o reinado de Guimarães.
As demissões só não foram comemoradas porque a maioria está sob efeito de remédios e ainda vive com o trauma do que viveu. Mas, mesmo sem alegria, respiram aliviados e esperam punições da Justiça.
Assim como repetem um padrão nos relatos do modus operandi de Guimarães – repetem um lema que ficou conhecido nos corredores do banco quando o ex-presidente assumiu.
Ele, que era um “espelho” do modo bolsonarista de viver – pegou carona no discurso do combate à corrupção que ajudou a eleger Bolsonaro em 2018. Dizia, se gabando, que “a Curitiba, ele só ia a passei ou a trabalho”, referindo-se a petistas presos na Lava Jato.
Guimarães também dizia que, em sua gestão, a Caixa saiu das páginas policiais – referindo-se a dirigentes de estatal como Geddel Vieira Lima, que foram presos por escândalos envolvendo esquema de corrupção da Caixa.
“Ele se gabava de que a Caixa não estava mais nas páginas policiais. Acho que a sensação de impunidade e de tratar a mulher como cidadã de segunda categoria, de humilhar os outros… Tudo isso o levou a pensar que assédio era um crime menor. Olha onde está a imagem da Caixa agora”, lamenta uma das funcionárias vítima do assédio de Guimarães e sua “trupe”.
Fonte G1, Andréia Sadi 03/07/2022
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