Dentre todas as revoluções que já impactam as formas de trabalho contemporâneas, a atual pandemia da COVID-19 que assola o início do século XXI motiva não apenas serenidade e comprometimento social, como também reflexões acerca do Direito do Trabalho.
Dentre todas as revoluções que já impactam as formas de trabalho contemporâneas[1], a atual pandemia da COVID-19 que assola o início do século XXI motiva não apenas serenidade e comprometimento social, como também reflexões acerca do Direito do Trabalho.[2]
Neste cenário, desde já, é necessário ponderar o atual, mas planejar e antever cenários aos quais seremos desafiados no ambiente laboral. Nas próximas semanas e meses, surgirá cada vez mais uma espécie de estrato no contingente da mão de obra disponível, refletindo uma nova dualidade entre as potenciais vítimas da COVID-19 e os já recuperados ou imunizados.
Dentro deste contexto, aos empregadores pode surgir uma questão: É constitucionalmente admissível que o empregador prefira ou exija pessoas no momento da contratação que já estejam imunizadas ou curadas da covid-19?
Concisamente, para responder a tal indagação, é necessário conjugar as disposições da Constituição Federal, Convenção n. 111 da OIT e a Lei 9.029/95.
De início, acerca de como a Carta Magna seria aplicável à questão, cabe registrar que “a interpretação sistemática da Constituição da República e dos seus princípios e direitos fundamentais, notadamente, os valores sociais do trabalho, a dignidade da pessoa humana, a melhoria das condições sociais do trabalhador e a função social da propriedade (artigo 1º, III e IV, 7º, caput e 170, III e VIII), determina a proibição de discriminação de pessoas com limitações de qualquer ordem, inclusive em razão de doenças, sejam elas físicas ou mentais”.[3]
A Convenção nº 111 da OIT[4] prevê que os países signatários devem formular e aplicar uma política que promova a igualdade de oportunidades em matéria de emprego e profissão, sendo vedada a discriminação em processos seletivos por raça, sexo, crença ou qualquer outro fator.[5]
Firmados tais pressupostos acerca do Direito Constitucional do Trabalho e também da vertente internacional deste, é necessário ir especificamente à legislação aplicável. No âmbito trabalhista, a principal norma acerca da dispensa discriminatória é a Lei 9.029/95 que, em seu art. 01, prevê:
é proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho, ou de sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, deficiência, reabilitação profissional, idade, entre outros, ressalvadas, nesse caso, as hipóteses de proteção à criança e ao adolescente previstas no inciso XXXIII do art. 7o da Constituição Federal. (grifos nossos)
A legislação infraconstitucional, em consonância com a Convenção nº 111, veda práticas discriminatórias na admissão ou no curso da relação de emprego, em razão de sexo, situação familiar, idade, entre outros fatores.[6]
Outra resposta possível poderia ser encontrada na construção jurisprudencial do Enunciado de Súmula 443 do TST, que dispõe que “presume-se discriminatória a despedida de empregado portador do vírus HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. Inválido o ato, o empregado tem direito à reintegração no emprego”. Se não é cabível a despedida de empregado por doença grave que suscite estigma ou preconceito, seria defensável a impossibilidade de não admissão por doença que cause estima ou preconceito de contágio?
Como se percebe, ainda que brevemente, a normativa trabalhista vigente não apresenta uma solução expressa no que tange a eventuais discriminações advindas de comorbidades ficando tais considerações eventualmente subsumíveis ao juízo dos intérpretes, por exemplo, às expressões “outros fatores” da Convenção nº 111 da OIT ou “outra doença grave que suscite estigma ou preconceito” do Enunciado sumular.
Diante disso, é necessário, como mencionado, conjugar as disposições da Constituição Federal e da Convenção n. 111 da OIT com o que prevê a Lei 9.029/95, a partir de uma ponderação entre os interesses dos empregadores e os potenciais empregados, para a apresentação de uma tese estável, justa e adequada ao sistema de Direito Constitucional do Trabalho vigente.[7]
A Lei 9.029/95, ao tratar sobre condutas discriminatórias, faz um rol exemplificativo de práticas que configurariam discriminação na relação de trabalho[8], existindo, portanto, uma margem que permite o elastecimento de sua incidência.
Neste sentido, considerando a possibilidade de aumentar a abrangência da norma, bem como o temor criado em relação à contaminação pela COVID-19, entende-se que ser portador ou possível transmissor é um fator estigmatizante, que pode acarretar a discriminação no ambiente de trabalho[9]. Logo, a “desclassificação” em seleção por ausência de imunização do vírus pode ser analisada sob a luz desta norma.
Assim, considerando a disposição da Lei 9.029/95, que veda a prática discriminatórias na admissão e no curso da relação de emprego, entende-se que a exigência durante o processo seletivo de teste de imunização à COVID-19 consiste em uma conduta discriminatória, podendo ser equiparada a vedação de exigência de entregas de exames de doenças estigmatizantes ou teste negativo de gravidez na admissão, previsto do art. 2º da norma supracitada.
Do mesmo modo, por ser uma doença, até onde a ciência aponta no momento, temporariamente estigmatizante, a desclassificação de um candidato em um processo coletivo em razão deste ainda estar suscetível à COVID-19 ou já ter adquirido a doença e não se encontrar imunizado, é discriminatória.
Um argumento possível e, a priori, lógico para pretender refutar esta posição seria o de que a exigência de um atestado de imunidade ou recuperação com relação à COVID-19 seria uma medida de proteção à saúde coletiva dos demais trabalhadores de certa unidade.
Entretanto, este não é um critério de discriminação positiva proporcionalmente admissível em todos os casos, pois deturpa desproporcionalmente o dever de garantia de ambiente de trabalho saudável a ser garantido pelo empregador, não podendo este ser transferido aos potenciais ou efetivos funcionários.[10]
Contudo, diferentemente da súmula nº 443 do TST, nestes casos é necessário que o empregado comprove que a desclassificação se deu por este fator e não por questões outras[11], não podendo ser admitida a hipótese de negativa de admissão por mera precaução de saúde coletiva.
Assim, entende-se que não é possível criar uma presunção de que a desclassificação do candidato ainda suscetível ao coronavírus (não imunizado) se deu de modo discriminatório. Acaso houvesse a desclassificação, como poderia a empresa comprovar que a negativa se deu por outras razões ou que não tinha ciência da sua testagem do vírus?
A inversão do ônus probatório em desfavor da empresa, nestes casos, acarretaria em uma grande dificuldade do empregador de provar que não ocorreu classificação do candidato em razão da possibilidade de adquirir a doença ou pela ausência de imunização.[12]
Logo, por ser considerada uma doença que gere um possível preconceito, em razão do contágio e gravidade, não é constitucionalmente admissível preterir trabalhadores que não estão imunizados da COVID-19 em seleções, o que não assegura, todavia, a inversão do ônus probatório em favor do empregado.
Com isso não se quer dizer que devem ser contratados empregados que se encontram acometidos pela doença ou ainda são transmissores, o que se quer dizer é que a imunidade não pode ser um fator único e vinculante de discriminação em um processo seletivo.
Ainda em relação ao caráter discriminatório da predileção de candidatos imunizados é necessário aqui fazer a ressalva no que diz respeito a determinadas atividades que guardam relação como sistema de saúde ou lidam diretamente com pessoas integrantes do grupo de risco, onde, sim, é possível, identificar um critério de discriminação legítima.
Nestes casos, existe uma finalidade para a discriminação positiva[13] dos candidatos entre imunizados pelo COVID-19 e potenciais portadores do COVID-19, que é a saúde de terceiros ou do próprio candidato.Frise-se, para determinado emprego, mas não de forma geral e irrestrita. No contexto da pandemia da COVID-19 a preferência por alguém já imunizado em determinados setores/atividades pode ser fundamental para salvar vidas, como é o caso de cuidadoras de pessoas do grupo de risco.[14]
Em suma, entende-se que no momento da seleção dos funcionários não é possível exigir documentação ou realizar testes que comprove a imunização à COVID-19, a qual é enquadrada como prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho.
Do mesmo modo, a preferência de um candidato em detrimento de outro tendo como base a possibilidade de contaminação ou a imunização é, a princípio, discriminatória, salvo os casos em que exista uma justificativa na predileção, fundada nas atividades desempenhadas inerentes à vaga pretendida. Neste último caso, a conduta não pode ser enquadrada como discriminatória, em razão de existir um outro interesse tutelado, qual seja a saúde pública e do trabalho coletivo.
Fonte Democracia e Mundo do Trabalho, 27/05/2020
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