Além de uma montanha com mais de 180 mil mortos e um exército de 14,1 milhões de desempregados, o negacionismo, a lentidão e a irresponsabilidade de Jair Bolsonaro durante pandemia vão deixar outro legado: a redução da confiança de uma parcela da população na ciência, na medicina e na efetividade das vacinas. Dessa forma, ele convida outras doenças a entrarem e ficarem à vontade, como fez com a covid-19.
Pesquisa Datafolha, divulgada neste sábado (12), aponta que 22% dos brasileiros não pretendem se vacinar contra a coronavírus – em agosto, eram 9%. No mesmo período, a quantidade do que afirmaram que querem se vacinar caiu de 89% para 73%.
Em outubro, outro levantamento do instituto, feito em municípios, apontou que 17% dos moradores de São Paulo, 16% do Rio de Janeiro, 15% de Belo Horizonte e 20% do Recife não pretendiam se imunizar quando saísse a vacina.
A máquina de guerra bolsonarista está à toda, fazendo circular notícias falsas, boatos e outros tipos de desinformação sobre a vacina – principalmente a desenvolvida na China, sem apresentar provas de ineficácia ou risco. Isso preocupa não apenas pelo desfecho da pandemia em curso, mas pelo que a descrença pode causar no combate a outras doenças. Afinal, a covid não é a única moléstia contra a qual temos que ser imunizados desde o nascimento.
O Brasil sempre ostentou altos índices de comparecimento nas campanhas de vacinação. Nos últimos tempos, mentiras nas redes sociais e nos aplicativos de mensagens começaram a colocá-las em dúvida. No caso do sarampo, por exemplo, o resultado foi o aumento no número de casos dessa doença que já estava erradicada no território nacional.
Natália Pasternak, doutora em microbiologia e diretora do Instituto Questão de Ciência, explicou à coluna, após a divulgação da pesquisa de outubro, que se não houver uma adesão em massa da população, a quantidade de pessoas protegidas pode não ser suficiente para fazer o coronavírus parar de circular.
“E além do impacto relacionado à covid, a proteção de apenas uma parte da população vai gerar sentimento de desconfiança sobre a própria eficácia das vacinas. O que acaba afetando o enfrentamento a outras doenças”, afirmou.
Guerra política está levando à descrença da população em vacinas
Bolsonaro transformou a saúde pública em arena de guerra política. Alimentou a polêmica sobre a vacina para manter mobilizada uma parcela do bolsonarismo mais radical, que o defende incondicionalmente. E ataca iniciativas de possíveis adversários nas eleições de 2022, como o acordo assinado entre o governador de São Paulo, João Doria, e o laboratório chinês Sinovac para a fabricação da Coronavac no Instituto Butantan.
Os ataques, aliados à xenofobia que já existia por aqui, surtiram efeito – tanto que a mesma pesquisa Datafolha, deste sábado, aponta que 50% dos brasileiros não querem tomar uma vacina desenvolvida pela China, enquanto o número cai para 23% quando a oferta é de uma que venha dos Estados Unidos.
Teorias da conspiração mais estapafúrdias têm sido usadas para desmoralizar a vacina. Uma das mais famosas diz que o coronavírus foi criado em laboratório pela China e a vacina daquele país contaria com microchips que seriam inoculados a fim de que todos os habitantes do mundo fossem rastreados e controlados através de antenas de 5G. E que isso seria um plano da intelectualidade global junto com bilionários pedófilos, os cavaleiros templários e os Illuminati. Só faltou botar um Godzila e um Wolverine no meio.
Neste momento, se pudesse, Bolsonaro compraria todas as vacinas desenvolvidas na China para uso imediato e aplicaria na população, levando os louros por isso. A defesa ideológica de um posicionamento, na verdade, esconde aqui incompetência. Pois a inação do Ministério da Saúde nos trouxe a este ponto, no qual o governo federal não tem uma vacina para aplicar em massa no curto prazo. E, como ficamos sabendo nesta sexta, chegou a aventar a possibilidade de confiscar o que for produzido no Butantan.
Campanhas de desinformação estão nos devolvendo ao passado
Bolsonaro afirmou, neste sábado, que “quando o Estado avança sobre direitos e liberdades individuais, dificilmente recua”.
Desavisados podem crer que ele estava fazendo uma autocrítica ou uma ameaça. Ou falando da ditadura militar, que tanto defende, que avançou sobre as liberdades individuais e levou 21 anos para recuar. Mas estava se referindo à obrigatoriedade da vacinação. A questão, que nunca foi polêmica, foi escolhida pelo presidente para encenar mais uma farsa de vida ou morte a fim de excitar seus seguidores radicais.
A obrigatoriedade, hoje, é decorrente de perda de acesso a benefícios – o Bolsa Família é suspenso, por exemplo, para quem não vacina os filhos. Mas não há coerção física, como ocorreu na Revolta da Vacina, no Rio, há mais de 100 anos. Além disso, a população, quando informada da importância das vacinas, comparecia voluntariamente aos postos de saúde – comparecia, porque, como citado no caso do sarampo, as campanhas de desinformação nas redes sociais estão nos devolvendo ao passado.
Uma coisa é desconfiar da indústria farmacêutica – que já provou que merece isso. Outra é ser contra um esforço que envolve milhões de pessoas, realizado com respeito ao método científico, com batalhões de testes, publicização de dados, debate entre os pares, discussão global de resultados, em um dos maiores empreedimentos da história humana para encontrar um produto que ajude no combate à pandemia.
Como já disse aqui antes, considerando que o presidente da República Jair Bolsonaro empurra cloroquina, um produto sem eficácia comprovada para a covid e cheio de efeitos colaterais, goela abaixo dos brasileiros porque tem fé no medicamento; afirma que não acredita nas imagens de satélite e nos vídeos de queimadas na Amazônia porque que floresta úmida não queima; crava em pleno Memorial do Holocausto, em Israel, que o nazismo era um movimento de esquerda; e que vê o aquecimento global como uma grande bobagem, estamos até no lucro com esses 22%.
Em tempo: o total de brasileiros que acredita que a Terra é plana é de 7%, segundo o Datafolha, em julho do ano passado. Se eu fosse o instituto, rodaria a pesquisa novamente.
Fonte UOL, 12/12/2020
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